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Mostrando postagens de março, 2018

Bom dia

Eu me lembro de acordar aos domingos antes de todos os meus irmãos. Era um dos poucos momentos em que eu ficava sozinho aos meus sete anos. Quando ficava deitado na cama de baixo da beliche, um sol pálido e preguiçoso acertando meus olhos de maneira pouco gentil. Na meia luz do quarto, com a respiração de meus irmaos enchendo o ambiente, eu conseguia escutar minha mãe na cozinha pela porta aberta. Era um som familiar de panelas no fogo, copos tilintando e uma melodia cantarolada baixinho. Eu podia ver os movimentos dela por debaixo dos meus olhos fechados e sabia que ela usava um avental amarelo, enquanto colocava canecas e pratos para nós três. Tinha pão quente, e eu me lembro da toalha de mesa florida que usávamos para brincar de cabaninha vezes sem conta. Nessa hora eu costumava levantar sozinho da cama. Sem me espreguiçar, lavar o rosto, ou arrumar as cobertas. Eu só sentia o chão gelado contra o quente dos meus dedos, e caminhava até a cozinha desviando de carrinhos, boneca...

A culpa dos mortais - Análise de "O gato preto" - Edgar Allan Poe.

Recomenda-se ler o conto original antes ou depois de ler a análise. Existem coisas a respeito da natureza humana que são bem conhecidas, ditas claramente como verdades: que sentimos medo, culpa e que somos capazes de fazer coisas que nem sequer imaginamos. Esses três pontos são cruciais para que possamos analisar “O gato preto”, um dos contos mais famosos de Edgar Allan Poe. O mestre do horror, mas também o mestre dos enredos psicológicos, traz aqui mais um conto cheio de paralelismos, obrigando-nos a investigar não só a mente do protagonista, mas também a nossa, já que por mais incrível que pareça, podem ser extremamente parecidas. Interessante, antes de tudo, tratar de nosso personagem principal, o próprio narrador, que necessita contar sua história para livrar a alma pois morrerá no dia seguinte, uma punição por um crime até então desconhecido, mas com certeza grave, já que sua punição é a morte. Eis o primeiro medo: A morte, mesmo aparentando certo ceticismo, o narrador...

Vermelho

Eu me acostumei a procurar por ele nas esquinas das ruas vazias. Nas mesas dos bares barulhentos. Nas janelas riscadas dos ônibus. Nas estações lotadas do metrô. Me acostumei a procurar os sinais de vermelho quente em meio a multidão de pessoas frias. Um casaco pesado, uma touca na cabeça, um cachecol em forma de laço em volta do pescoço. Tudo em vermelho sangue. Pulsante. Vibrante. Tão fácil de se ver na maré cinza de todos os dias. Deveria ser fácil, mas eu parecia cega. Olhos vendados, ou o mundo se fazia sempre preto em branco ao meu redor. Mesmo assim achei que eu o encontraria no meio do caos. Me acostumei a procurar. Achei que eu o conhecia. Que sabia bem dos traços do seu rosto. Da cabeça aos pés. Dos gostos dele até a forma como ele conseguia pintar o mundo de todos em colorido. Eu queria transbordar meu mundo da mesma forma. Achei que ele era um velho amigo meu, e que eu tinha propriedade de contar sobre ele nas minhas histórias. Mas eu não tinha. Um dia perceb...

A primeira vista

A primeira coisa que eu vi foram os seus dedos. Dedos finos e de unhas curtas e sujas de terra, todo o ar cheirava a terra quando eu notei a sua presença. A tarde andava a passos lentos do lado de fora, uma brisa gostosa me espantava o calor do verão, a sala de aula vazia pelas férias já na metade. Estava entretido no dever de reforço de física de tal forma que não notei quando ele se debruçou contra a janela ao meu lado. Não escutei o riso frouxo que deixou escapar pelo nariz e me sobressaltei quando ele batucou na madeira da carteira com os dedos sujos de terra. -Por que ainda está aqui? - ele perguntou de maneira debochada. - Achei que fosse um fantasma quando te vi pela janela. Quase disse que a assombração deveria ser ele, pelo susto que me dera, mas me distrai com a mancha de terra no meu exercício, esfregando com o dedo apenas pra deixar a mancha pior. -Recuperação em física - disse apenas. - E você? Ele apoiou o rosto nas mãos sujas e olhou para o canteiro atrás da e...

Deixar

A gente costuma abandonar, mas deixar? Não conheço alguém capaz de deixar. Mas deixar o quê? Não me pergunte, apenas me intriguei com o pensamento. O pensamento de finalmente deixar você. Mesmo que seja ruim, que não tenha nada de bom, não sei como deixar você.  Foi como uma árvore que cresceu e criou raízes, você se plantou em mim e eu tive a infeliz ideia de te regar, agora não dá para te deixar. Até uma bruxa chamei, pedi que te arrancasse, a força e sem pudor, te levasse para longe e te deixasse lá, mas não sei se funcionou, talvez alguma semente tenha sobrado e eu não a deixei ir.  Não sei porque tanta moléstia, é só deixar e você vai, mas ainda não foi, só parou de crescer, mas não foi. Não é minha culpa não deixar, você costumava fazer parte de mim, mesmo em sonho, mesmo em pesadelo. E agora tento te deixar ir, então vai, me solte, não me abandone, só me deixe, que eu te deixo para onde quiser ir. Por Flowers. 

Gaiola

Ela era apaixonada pelo mundo. Tinha alma de cigana. Peito leve. Não conseguia aquietar em um unico lugar e sempre sentia que havia muito mais lá fora do que dentro de casa. Eu era apaixonada por ela e sabia que nunca ganharia do mundo inteiro. O que eu tinha para oferecer pra ela que valesse mais que o mundo? Era inevitável que eu não sentisse o ciúmes pinçar em meu peito. O outro era tão bonito e cheio de histórias não contadas. Eu era apenas eu. Tão pequena e sem graça em comparação. Eu tentei a segurar dentro do meu próprio peito. Tentei a trancar em mim para que ela não visse nada do lado de fora. Me transformei numa prisão. Cadeado. Gaiola. Tentei fazer com que ela não o visse. Talvez assim a falta não se fizesse nela. Pensei nisso tantas vezes que quase aconteceu. Mas a prisão sufocava. Deixava meu peito pesado com o peso de nós duas. E eu via nos olhos dela que ela era feito passarinho, que precisa voar para poder cantar. Para poder viver. O que é um passarinho preso...

Pensar

Pensava em voltar Não para onde parou, Mas para onde deveria ter parado. Pensava em não esperar Não porque perderia alguma coisa, Mas porque a ânsia de te ver me enchia o peito e perturbava a cabeça. Eu fui pior do que poderia ser Nos sabotei Tirei dos seus olhos o que eu não queria ver Penso em voltar, Se você ao menos pudesse aceitar Não sabe o que é não ter os braços de minha protetora. Então pelo menos tente aceitar. Não vou jogar, Você me livrou dos meus pesos, E eles me acorrentam por estar sem você Culpado ou não já fui condenado, Mas pensei apelar ao juiz Pena que o juiz é você. Eu penso, eu sei, que é difícil acreditar Não é uma questão de mudar, Eu só sei que apenas você pode me salvar. Não pense, mesmo que você não assuma, Eu sei o que eu fiz Mas deixe-me voltar, Eu ainda penso voltar E nunca vou parar de pensar Pois nunca se esquece do que não se pode ter. Pensando ou não pensando Eu não me conte...

Copo americano

Ela tentou voltar o olhar para algum outro canto da cozinha. Tentou. Mas os olhos sempre voltavam para o copo que descansava sobre a pia. Era um copo americano normal, daqueles em que você toma pingado todos os dias de manhã na padaria. Era um copo normal, mas ele era diferente. Ela suspirou, enquanto descansava o rosto nos braços cruzados sobre a mesa. Aquilo havia se tornado parte da sua rotina. Fazia quase uma semana que se acostumara a tomar seu café da manhã na cozinha silenciosa. Ela só podia escutar a própria respiração e as crianças no apartamento de cima. E então, depois de comer ela só ficava ali, devaneando enquanto os olhos fitavam o copo vazio. Naquela semana ela decorara cada traço dele. A forma como a luz fraca da manhã refletia no vidro e brilhava na pia. O trincado na borda, de quando ele o deixara cair enquanto lavava a louça mês passado. E ela lembrou do sorriso culpado no rosto de barba por fazer quando ela perguntou o que estava acontecendo. O resto de café ...

O garoto de capa vermelha

Foi só por alguns segundos. Um vislumbre pela janela arranhada do ônibus. Quase não podia acreditar em como a cena lhe lembrava algo saído de um filme. Era um garoto que ela via pela janela. Ela sentada. Ele correndo. A touca do moletom vermelho na cabeça, o restante da peça voando atrás de suas costas como uma capa de super herói. Uma capa de cavaleiro. De um rei. O garoto corria rua abaixo sob o sol fraco de uma tarde quente. Os chinelos batendo no calcanhar, os braços grudados ao lado do corpo. Ele corria, mas não perdia o fôlego. Não ofegava. Parecia poder continuar correndo por dias se precisasse. Até alcançar o que almejava com a corrida. E o que um garoto daquela idade podia querer tanto para correr daquele jeito? Talvez nada. Talvez tudo. E o mais estranho de toda a situação é que ela se viu torcendo para que ele corresse mais rápido pela calçada desnivelada. Seu peito se enchendo de uma pressa e de uma agonia por estar ali sentada. O garoto do lado de fora do ônib...

Prisões da vida - Analise do conto "De água nem tão doce" de Marina Colasanti.

Conto original: De água nem tão doce Criava uma sereia na banheira. Trabalho, não dava nenhum, só a aquisição dos peixes com que se alimentava. Mansa desde pequena, quando colhida em rede de camarão, já estava treinada para o cotidiano da vida entre azulejos. Cantava. Melopeias, a princípio. Que aos poucos, por influência do rádio que ele ouvia na sala, foi trocando por músicas de Roberto Carlos. Baixinho, porém, para não incomodar os vizinhos. Assim se ocupava. E com os cabelos, agora pálido ouro, que trançava e destrançava sem fim. "Sempre achei que sereia era loura", dissera ele um dia trazendo tinta e água oxigenada. E ela, sem sequer despedir-se dos negros cachos no reflexo da água da banheira, começara dócil a passar o pincel. Só uma vez, nos anos todos em que viveram juntos, ele a levou até a praia. De carro, as escamas da cauda escondidas debaixo de uma manta, no pescoço a coleira que havia comprado para prevenir um recrudescer do instinto. Baix...