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Acalento

Eu sabia, no momento em que escutei os passos abafados que vinham do corredor, eu sabia que era Ana quem se esgueirava pela escuridão até o meu quarto. Aquele era um costume que ela havia mantido, mesmo que agora ela estivesse no auge de seus dezesseis anos. Ela podia se achar muito madura pra brincadeiras no bosque, mas não para dormir junto da irmã mais velha. Eu agradecia por isso. Quando nós viemos passar nosso primeiro verão na casa de nossos tios éramos pequenas o bastante para nos deixarmos assustar por histórias sussurradas pelos empregados. Fadas nos troncos nodosos de árvores tão velhas quanto nossos avós. Espíritos que chamavam os nomes de crianças malcriadas, em muxoxos cantarolados entre as folhas muito verdes. Nossa babá gostava de nos contar essas histórias na hora de dormir. E depois que ela apagava a vela branca no criado mudo, e fechava a porta do quarto, não demorava para que eu escutasse a madeira ranger sob o peso dos pezinhos de Ana se esgueirando até min

Criança

Criança, não se esgote, mesmo que não goste, ainda tem muito pra seguir. Eu sei, os prazos te cansam, a maldade o espanta e dá muito medo de seguir. Mas criança, não se encoste, não deixe que os outros a derrote e não te deixe seguir. Mesmo que não pareça, criança. a vontade é o que mais encanta e o faz seguir. Então se deixe, criança. Transporte o bom, arraste o inevitável e não se contente, pois esse é o dom da verdade que se sente, da criança.  Por Flowers.

Bom dia

Eu me lembro de acordar aos domingos antes de todos os meus irmãos. Era um dos poucos momentos em que eu ficava sozinho aos meus sete anos. Quando ficava deitado na cama de baixo da beliche, um sol pálido e preguiçoso acertando meus olhos de maneira pouco gentil. Na meia luz do quarto, com a respiração de meus irmaos enchendo o ambiente, eu conseguia escutar minha mãe na cozinha pela porta aberta. Era um som familiar de panelas no fogo, copos tilintando e uma melodia cantarolada baixinho. Eu podia ver os movimentos dela por debaixo dos meus olhos fechados e sabia que ela usava um avental amarelo, enquanto colocava canecas e pratos para nós três. Tinha pão quente, e eu me lembro da toalha de mesa florida que usávamos para brincar de cabaninha vezes sem conta. Nessa hora eu costumava levantar sozinho da cama. Sem me espreguiçar, lavar o rosto, ou arrumar as cobertas. Eu só sentia o chão gelado contra o quente dos meus dedos, e caminhava até a cozinha desviando de carrinhos, boneca

A culpa dos mortais - Análise de "O gato preto" - Edgar Allan Poe.

Recomenda-se ler o conto original antes ou depois de ler a análise. Existem coisas a respeito da natureza humana que são bem conhecidas, ditas claramente como verdades: que sentimos medo, culpa e que somos capazes de fazer coisas que nem sequer imaginamos. Esses três pontos são cruciais para que possamos analisar “O gato preto”, um dos contos mais famosos de Edgar Allan Poe. O mestre do horror, mas também o mestre dos enredos psicológicos, traz aqui mais um conto cheio de paralelismos, obrigando-nos a investigar não só a mente do protagonista, mas também a nossa, já que por mais incrível que pareça, podem ser extremamente parecidas. Interessante, antes de tudo, tratar de nosso personagem principal, o próprio narrador, que necessita contar sua história para livrar a alma pois morrerá no dia seguinte, uma punição por um crime até então desconhecido, mas com certeza grave, já que sua punição é a morte. Eis o primeiro medo: A morte, mesmo aparentando certo ceticismo, o narrador

Vermelho

Eu me acostumei a procurar por ele nas esquinas das ruas vazias. Nas mesas dos bares barulhentos. Nas janelas riscadas dos ônibus. Nas estações lotadas do metrô. Me acostumei a procurar os sinais de vermelho quente em meio a multidão de pessoas frias. Um casaco pesado, uma touca na cabeça, um cachecol em forma de laço em volta do pescoço. Tudo em vermelho sangue. Pulsante. Vibrante. Tão fácil de se ver na maré cinza de todos os dias. Deveria ser fácil, mas eu parecia cega. Olhos vendados, ou o mundo se fazia sempre preto em branco ao meu redor. Mesmo assim achei que eu o encontraria no meio do caos. Me acostumei a procurar. Achei que eu o conhecia. Que sabia bem dos traços do seu rosto. Da cabeça aos pés. Dos gostos dele até a forma como ele conseguia pintar o mundo de todos em colorido. Eu queria transbordar meu mundo da mesma forma. Achei que ele era um velho amigo meu, e que eu tinha propriedade de contar sobre ele nas minhas histórias. Mas eu não tinha. Um dia perceb

A primeira vista

A primeira coisa que eu vi foram os seus dedos. Dedos finos e de unhas curtas e sujas de terra, todo o ar cheirava a terra quando eu notei a sua presença. A tarde andava a passos lentos do lado de fora, uma brisa gostosa me espantava o calor do verão, a sala de aula vazia pelas férias já na metade. Estava entretido no dever de reforço de física de tal forma que não notei quando ele se debruçou contra a janela ao meu lado. Não escutei o riso frouxo que deixou escapar pelo nariz e me sobressaltei quando ele batucou na madeira da carteira com os dedos sujos de terra. -Por que ainda está aqui? - ele perguntou de maneira debochada. - Achei que fosse um fantasma quando te vi pela janela. Quase disse que a assombração deveria ser ele, pelo susto que me dera, mas me distrai com a mancha de terra no meu exercício, esfregando com o dedo apenas pra deixar a mancha pior. -Recuperação em física - disse apenas. - E você? Ele apoiou o rosto nas mãos sujas e olhou para o canteiro atrás da e

Deixar

A gente costuma abandonar, mas deixar? Não conheço alguém capaz de deixar. Mas deixar o quê? Não me pergunte, apenas me intriguei com o pensamento. O pensamento de finalmente deixar você. Mesmo que seja ruim, que não tenha nada de bom, não sei como deixar você.  Foi como uma árvore que cresceu e criou raízes, você se plantou em mim e eu tive a infeliz ideia de te regar, agora não dá para te deixar. Até uma bruxa chamei, pedi que te arrancasse, a força e sem pudor, te levasse para longe e te deixasse lá, mas não sei se funcionou, talvez alguma semente tenha sobrado e eu não a deixei ir.  Não sei porque tanta moléstia, é só deixar e você vai, mas ainda não foi, só parou de crescer, mas não foi. Não é minha culpa não deixar, você costumava fazer parte de mim, mesmo em sonho, mesmo em pesadelo. E agora tento te deixar ir, então vai, me solte, não me abandone, só me deixe, que eu te deixo para onde quiser ir. Por Flowers.