A culpa dos mortais - Análise de "O gato preto" - Edgar Allan Poe.


Recomenda-se ler o conto original antes ou depois de ler a análise.


Existem coisas a respeito da natureza humana que são bem conhecidas, ditas claramente como verdades: que sentimos medo, culpa e que somos capazes de fazer coisas que nem sequer imaginamos. Esses três pontos são cruciais para que possamos analisar “O gato preto”, um dos contos mais famosos de Edgar Allan Poe. O mestre do horror, mas também o mestre dos enredos psicológicos, traz aqui mais um conto cheio de paralelismos, obrigando-nos a investigar não só a mente do protagonista, mas também a nossa, já que por mais incrível que pareça, podem ser extremamente parecidas.

Interessante, antes de tudo, tratar de nosso personagem principal, o próprio narrador, que necessita contar sua história para livrar a alma pois morrerá no dia seguinte, uma punição por um crime até então desconhecido, mas com certeza grave, já que sua punição é a morte. Eis o primeiro medo: A morte, mesmo aparentando certo ceticismo, o narrador ainda precisa se livrar de algo que o aterrorizou, o torturou e o destruiu, provavelmente por não saber o que virá depois, mas ainda pensar que poderá vir algum castigo, algo pior do que ele já sofreu.

Entender como os fatos se desenrolam pode, em um primeiro momento, ser uma tarefa sem grande esforço, até se deparar com a grande complexidade do que eles significam. Primeiro, um homem que viveu uma vida tranquila, sempre calmo, ponderado e amante dos animais se casa com uma mulher de mesma índole e ambos passam a construir uma relação harmônica e sem complicações. Até que inesperadamente um gato surge, descrito pelo narrador como um animal de porte e beleza sem par, todo negro e de uma sagacidade impressionante. Esse é com certeza o ponto crucial onde os eventos começam a se caracterizar por cada vez mais trágicos.

O nome do gato é Plutão, dentre seus significados, encontramos relação com o deus dos mortos, aquele que cuida do submundo para onde são mandadas as almas daqueles que já morreram, que anda pelas sombras, Hades para os gregos. Mesmo com isso, o casal passa a ter tremendo afeto pelo animal, aonde o narrador vai ele vai atrás, sempre ali, ao lado.

A partir disso vemos a transformação do narrador, de um homem comum, aparentemente correto, sem nenhuma suspeita, para alguém que se afoga na bebida, maltrata a mulher sem nem dar importância para isso e perturba até os animais por simplesmente cruzarem seu caminho.

E então, quando menos se espera, ocorre o primeiro clímax: uma noite, ele cisma que o gato o está evitando, insiste em lhe fazer mal, e ao receber um arranhão como resposta, é possuído por uma fúria e arranca um olho do gato. Mas arrancar apenas um olho não é suficiente, pois o outro continua ali, entregando seu crime. Decide ser mais radical, o enforcando para acabar de vez com aquilo que tanto o incomodava, porém na mesma noite sua casa pega fogo, tudo é destruído, sobrando apenas uma parede com a marca de um gato enforcado.

As coisas não melhoram, o narrador continua bebendo, o casal se muda para uma nova casa, mas seu comportamento continua o mesmo, até ele sentir a necessidade de encontrar outro gato para substituir o primeiro, e encontra. Tudo parece se repetir, o animal o segue e principalmente a mulher passar a ter um enorme carinho por ele. Mas não seria tão fácil, um dia percebe que o gato possui apena um olho e uma mancha no pescoço que parece uma forca. Isso o consome, não o deixa dormir, pois toda noite a criatura está lá, olhando-o com aquele um olho acusador, lembrando a culpa pelos seus atos.

 O narrador não para por aí, um outro dia, ao descer com a esposa para o porão, se atrapalha com o gato e outra vez tomado pela fúria, pega um machado para matá-lo, no entanto sua mulher o impede e acaba sendo a vítima, sem hesitar ele a acerta bem na cabeça, assassinando-a na hora.

Sendo um pouco previsível, mais uma vez resolve esconder seu crime, prende o corpo dela na parede e reboca tudo de novo para não ter nem vestígios do ocorrido. A princípio se sente orgulhoso pois ninguém poderia notar uma diferença na parede, porém perdido em todo seu ego, ao tentar despistar os policiais que foram investigar o desaparecimento da mulher, acaba sentido o impulso de se entregar, mas antes que isto ocorra, ouve-se um grito como que vindo do inferno, a parede cai e lá está ela com o gato em sua cabeça, então o narrador se dá conta de que o havia prendido junto a esposa e que ele havia revelado seu pior crime.

Intrigante como os fatos se sucedem nesta narrativa, e como a causa de todos os problemas é atribuída ao gato, que na verdade não faz nada de errado, é apenas mais uma vítima da fúria do personagem principal,  mesmo assim nunca vai embora, não reage de forma agressiva e não faz nada contra ele ( a não ser pelo ponto de vista do narrador), quando acha que pode se livrar dele, ele volta, continua a persegui-lo, a olhá-lo  com um olho só e com a marca da forca. Assim é como a culpa, quando fazemos algo de errado e não queremos admitir, aquilo nos persegue, podemos tentar expulsá-la, mata-la, mais ela continua lá, chega a nos consumir, destruir tudo o que somos ( como a casa que pega fogo), e ainda assim sua marca não some ( a mancha do gato na parede após o incêndio) 

Além disso, o gato pode ser uma projeção do próprio narrador, que ao enxergá-lo, vê a si próprio, por isso a necessidade de arrancar-lhe o olho, como sendo a janela da alma, era capaz de revelar tudo aquilo que estava obscuro nele próprio.

Não se pode esquecer também do que faz com que o narrador comece a apresentar tal comportamento, a bebida em que ele se afoga e vicia, mas por quê? Por que um homem tão bom, com boa esposa e vida tranquila passa a beber tanto? Talvez nem precise pensar nele para ter a resposta, mas mais uma vez olhar para nós mesmos, quantas vezes fazemos coisas ruins quando tudo está bem? Temos medo do que pode acontecer então estragamos relacionamentos e oportunidades, fazemos auto sabotagens diárias sem ao menos perceber, e quando acaba dando errado de verdade tiramos nossa responsabilidade, arrumamos um “gato” para dizer que foi ele que nos atrapalhou. Chegamos a machucar quem mais amamos, mas fingimos que nada aconteceu, até que não aguentamos e denunciamos a nós mesmos.

Contudo, ainda se trata de um conto de terror, um conto de terror de Allan Poe, que também pode trazer muitas outras interpretações, como a perversidade da alma humana e a nossa falta de controle sobre as próprias ações, aqui ele mostra até que ponto tudo isto pode chegar, e talvez espera-se que realmente permaneça apenas no plano ficcional.


Por Flowers.

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