Prisões da vida - Analise do conto "De água nem tão doce" de Marina Colasanti.
Conto original: De água nem tão doce
Criava uma sereia na banheira. Trabalho, não dava nenhum, só a aquisição dos peixes com que se alimentava. Mansa desde pequena, quando colhida em rede de camarão, já estava treinada para o cotidiano da vida entre azulejos.
Cantava. Melopeias, a princípio. Que aos poucos, por influência do rádio que ele ouvia na sala, foi trocando por músicas de Roberto Carlos. Baixinho, porém, para não incomodar os vizinhos.
Assim se ocupava. E com os cabelos, agora pálido ouro, que trançava e destrançava sem fim. "Sempre achei que sereia era loura", dissera ele um dia trazendo tinta e água oxigenada. E ela, sem sequer despedir-se dos negros cachos no reflexo da água da banheira, começara dócil a passar o pincel.
Só uma vez, nos anos todos em que viveram juntos, ele a levou até a praia. De carro, as escamas da cauda escondidas debaixo de uma manta, no pescoço a coleira que havia comprado para prevenir um recrudescer do instinto. Baixou um pouco o vidro, que entrasse ar de maresia. Mas ela nem tentou fugir. Ligou o rádio, e ficou olhando as ondas, enquanto flocos de espuma caíam dos seus olhos.
Analise do conto:
Falar de literatura nunca é uma
questão muito fácil, ainda mais se tratando de Marina Colasanti. Como enxergar
o feminino através de seus olhos talvez seja o grande ponto de nossa discussão,
que com certeza é capaz de se abrir para tantos outros âmbitos sociais e
psicológicos que parecem até impossíveis de se analisar.
O conto “De água nem tão doce” já é
um grande exemplo (não sendo escolhido à toa), narrado em 3ª pessoa e com
apenas dois personagens conta a história de uma sereia e de alguém que a criava
(assim, de forma bem genérica) e por mais estranho que isso possa parecer ela
era completamente mansa, aceitava tudo o que lhe era imposto, mesmo que de
forma não direta. Talvez por ter sido treinada desde pequena até que ficava
mais fácil permanecer sozinha na banheira, entre os azulejos e longe da
imensidão do mar.
Até seu canto era contido, trocou as
melopeias pelas músicas repetidas do Roberto Carlos que tocavam no rádio que o
homem ouvia na sala, pois nem perto dela ele chegava. E é claro que cantava baixo,
porque os vizinhos não podiam se incomodar.
Passando os dias no tédio, apenas
trançava e destrançava os cabelos, que infelizmente não eram loiros de nascença
(já que toda sereia é loira), mas é um problema rapidamente resolvido por seu
dono ao trazer uma tinta e água oxigenada, e mais uma vez ela acata as ordens
sem pestanejar.
E mesmo que ela tenha feito sempre
tudo o que ele queria, apenas a levou a praia uma vez, de coleira e com a cauda
escondida, pois não é interessante que se deixe uma sereia fugir, para tanto
nem a deixou sair do carro, olhar pela janela já seria suficiente. Mais uma vez
o radio estava lá, impedindo-a de ouvir as ondas que a chamavam. Na verdade,
nem precisava de tanto esforço porque a sereia nem tentou fugir, apenas deixou
que seus flocos de espumas caíssem pelos olhos.
Provavelmente agora já seja possível
entender a que o conto se refere, perceber que aqui, a sereia não é mais aquele
ser sedutor que enfeitiça os homens mas sim um ser dominado, criado como bicho,
preso, sem voz e sem opinião. E pensando bem, qual das duas versões parece mais
próxima da nossa realidade? Quantas sereias conhecemos e deixamos passar
despercebidas?
Mulheres presas em suas casas como
uma propriedade, ou nas ruas, mas sem ser donas delas mesmas, precisam estar
comportadas, com roupas adequadas, na coleira, presas a seus donos. Vivem no tédio, arrumando os cabelos, fazendo
“coisas de mulheres”, ouvindo o cantor romântico da moda, sendo influenciadas
por aquilo que dizem ser o certo a ser consumido.
Entretanto, como foi tratado no
começo, a discussão se estende e podemos falar não só das mulheres, mas da
liberdade de qualquer pessoa que é tirada por algo ou por alguém. Treinados a
obedecer e a se encaixar no padrão, somos roubados de nós mesmos, mesmo sem
ninguém mandar, sabemos que devemos abaixar a cabeça e não reclamar. Acabamos
vivendo uma vida inteira de anticlímaxes, em que nada de interessante acontece,
seja homem ou mulher.
Ansiamos pela liberdade, mas nos
acostumamos tanto com as coleiras que quando chegamos perto dela já não
conseguimos alcançá-la, provavelmente porque estamos como a sereia, morrendo
por dentro (ou no caso, deixando nossas espumas escorrerem).
Então será que há mesmo uma escolha
para a liberdade? Há uma escolha para essas mulheres que vivem em relações
abusivas? Não só de maridos ou namorados, mas de pais, familiares, toda uma
sociedade que se coloca acima delas. Até quando será necessário pintar os
cabelos e trocar o estilo musical que se prefere, deixar de ser você por conta
de padrões?
Para conhecer mais sobre a autora Marina Colasanti
Por Flowers.
Bosta de texto
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